sexta-feira, 27 de julho de 2007

Anotações - II

Formigas acomodadas
são o prenúncio de que o terremoto
será tênue, quase um segredo
e só morrerão as lembranças

Relógios sem ponteiros
cansam o tempo como o quê

As melhores discussões
são à luz de lanternas sem pilhas

Ontem conheci um carteiro
que entregou a primeira carta de verdade
ele tinha escrito para a namorada
que é sua vizinha
ela não estava,
voltou ao remetente

Depois, um cientista apresentou
um espinho que não fere
numa flor que ele mesmo criou
para ser feliz

Há papéis que nunca voam
que colam ao chão, com medo da queda
certos incêndios sem fumaça
matam a esperança

Há estetoscópios para a solidão
mariposas maltratadas
felicidades sem soluços

Há tudo no mundo
mas faltam palavras
para achá-las.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Anotações

Por hoje, duas estátuas cansadas
uma chuva silenciosa, que não acordava os telhados
um vento que não fazia as curvas onde devia

Anotei também uma criança
que nasceu sem cordão umbilical
(e sobreviveu, conforme nota no jornal)

Duas cáries não latejavam
Dois passarinhos tratavam da vida
em monólogos desencontrados

Um cão manteve o rabo imóvel
em meio à alegria da chegada de seu dono
e li um livro inteiro
de páginas coladas

Um peixe estranho
queria voltar ao anzol
(achando o mundo cá muito estranho: faltava-lhe ar)
e esbarrei num magro tão intenso
que curvava com o peso de um palavrão,
dito horas antes

Por fim, sementes esquecidas em mãos cansadas
como um sacramento em busca de salvação
me lembraram um aluvião.