sexta-feira, 4 de março de 2011

Dezenove reinvenções

I
Não sei de onde veio a bênção
De tratar a dor como herança
E sorrir de sua fome, seu atrevimento,
Sua máscara.

Todos os meus arranharam a alma
Na mesma fonte.

II
Orientação para a luz:
Algo na vela me leva
Aos olhos do meu avô
Que não vi quando criança, adulto,
Que não verei quando velho.

Há uma lâmpada apagada em mim?

III
Amor, face extremada
Da procura mais antiga
A confissão só a si mesmo
Sem palavras

O amor cresce em silêncio
Como as unhas de todos os tempos.

IV
Ofereceu-me, então, um chá de bofetadas
Bebi lentamente, gole a gole, sem parcimônia.

V
Somente nas entranhas confio.
Delas, vem o estremecimento
A calma se dilata
Em assombos.

Dos músculos involuntários
Vem o amor
Os ruídos, odores, suores,
Sobressaltos.

O amor não é limpo e calmo
Não vem perfumado
Não sabe permanecer qual corola

Vem perfurado
Até que um dia
O sangue estanque.

VI
Há dias perigosos
Em que o não saber
Vai adiante.

Inútil querer fugir
Se no meio-fio
Resvala a vida

E fugir é fitar o suicida
Teu morador antigo.

VII
Minha tia gritava ao amanhecer
Lhe doíam os ossinhos
Que viraram pó e saudade

Seus cabelos de nuvem
Agora sonham com os antigos
Que estão na outra margem.

VIII
Nesses dias de sol
Em que a vida se proclama
A presença ostensiva de Deus
Chega a ser uma deselegância

IX
Sobre esses dias
Pouco é dito
Meus passos na sombra não cansam
Não tenho lágrimas por perto
Meus abismos são mocinhas
Querendo quem as ame.

X
Mais fácil não lembrar
A bênção invertida de nada ver
Nada sentir
Olhos sem travas na penumbra

XI
É fácil colher as tempestades
Agarrados à raiz
Que deixaram pronta.

Mas eu lembro e lamento:
E teu pão?
O que farão dos teus ossos
E tendões?


XII
Então, chega o momento
Em que o homem se torna
Apensa o que foi
O encontro temido
Consigo
O mais íntimo
O mais dentro
O que não se pronuncia.
Tens medo
De ter sido teu prisioneiro?

XIII
Minha calma é como leite fervido
Sempre é tarde para quem perde
O piscar de olhos
No quando.

XIV
Mas levo também lembranças
Que pesam como batalhas
Os que mataram sabem
Os que morreram sentem
Todos estavam lá
Como eu.

XV
Lembranças crescem lentamente
Como os cabelos
De um cão

Com elas, me deixei povoar
Por rios inumeráveis
Finos como veias
De um inocente
Até que um dia
Colei as imagens umas às outras
Assoprei apagando um incêndio
E as mãos
Ficaram vazias.

XVI
“Ele viu executarem o irmão.
Ficou dois meses presos.
Foi dois mil reais”.
Escutei.
Escutei.
Escutei.
Mil vezes escutei.

XVII
No último instante
Tudo desce como o leito
De um velho rio
Sem vingança, sem prece
Apenas desce.

XVIII
Nenhuma sombra é maior
Que a minha ilusão
Mas não se pode cantar
Violando as estrelas
Colocando nos bolsos
Os doces da festa
Que não houve.

XIX
No esmorecimento
No fraquejar
O homem distorce os escombros
Seu corpo também
É uma aldeia de luz.