quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Tempo de vidro (poema completo)

Por Samarone Lima

I

Nasci o terceiro
Na linhagem dos homens
Os seios de minha mãe
Estavam gastos de outras bocas
E de longe
Mamei no tempo

Nasci com o sangue de minha mãe
Espargindo em meu corpo
A dor da vida

Minha avó foi a cativa
A me dar o pó da Via-Látea
Dissolvendo-o a colheradas
Em copos de geléia

Quando voltei
Ao seio de minha mãe
Morri de sede
A minha parte no mundo
Era destinada ao desconhecido
Que sempre fui

Então morri
E sobrevivi de minhas cicatrizes

II

Meu pai me matou muitas vezes
Sua mão era pesada
Como as mãos de quem carrega pedras
Para dentro do coração de osso
Mas só morri
Quando ele estancou a própria morte
Em mim

Soube de outras mortes
Arrancadas de dentro
Como coisas fecundadas e não nascidas
Que seguem gerando no tempo


Meu pai morreu muitas vezes
Em noites de sexta-feira
Em meio aos goles de saudade
Quando seu pai, mais ausente que o meu
Criava os golpes de
Metades nunca encontradas

Lágrimas envelhecidas
Amoleciam o chão
Como um corpo que desliza para o passado
E encontra outra vida
Na contramão

III

As ruas do Crato me deram o chão
E as janelas
Os homens e suas sementes
E quando cheguei ao Brejo
Vivi o papel de quem vai sem saber
Que está nos confins de sim mesmo

Até que o tempo queimou
A poeira dos meus cabelos

Havia o mundo por destino
Os rios que subiam como leite fervido
As estradas que nunca chegavam ao fim
E minha busca das origens apagadas pela saudade

Nunca minha solidão foi explicada
Como os rios passam e não se explicam
Apagaram a marca do meu destino
As marcas do tempo manchando as pedras
E me restou atravessar os desertos da pele

IV

As deliberações paternas nunca tinham sentido
Chorei por razões óbvias
Enquanto as palavras ardiam
No fogo do silêncio

Minha mãe cuidava do pranto alheio
E engolia o seu
Minha avó acreditava na família unida
Completa e feliz
Como frases de uma bandeira, uma lápide
E louvava a Deus sobre todas as coisas
E pessoas

Meus irmãos cresceram junto aos meus ossos
Dormimos juntos e sonhamos desacordados
Como se cada infância tivesse sua própria poeira
Minha mãe cuidava do nosso pão
Mastigava seu pedaço de pedra
Cozida em alguma primavera
Que não tinha nascido

Minha avó somou os terços, rosários, súplicas
E Deus foi apenas um visitante rápido
Numa tarde de domingo

V

Um dia encontrei uma cômoda, gavetas
Criei mundos de silêncio
Procurando coisas não nascidas

Um dia a cômoda sumiu
As gavetas se perderam
E criei outro alfabeto
Para não estar no tempo dos homens

Descobri que a infância
Não dura sete anos
Mas o tempo de um sentimento
E não sei se era moço ou velho, ou infante
Sei que meu sorriso
Tinha faltado a algum encontro
Com os rostos que me deram

Levei a cômoda por dentro
Talhei gavetas com as unhas
Dobrei roupas dos meus antepassados

Um dia esqueci de abrir
As coisas guardadas em mim
E segui como quem perde os dentes
E começa a sorrir ser os lábios
E já não sei onde estão as roupas dobradas
De outro tempo
Nem os dedos que talharam as madeiras de ferro
Nem as unhas
Que comi na fome que não cessa

VI

Mordi o veneno da vida
Armazenado em caixas secretas
Não me deixaram morrer
A garganta, pela primeira vez, salvou minha vida
(embora a língua tenha sido ferida)

Cuspi a morte
E vivi em pequenas doses
Diversas outras sortes
Ocultando outras feridas

VII

Meu irmão, que buscou o soacerdócio
Tentou salvar a família
De todas as dores
Mas voltou antes do seu sacro ofício
E queimou nas fogueiras
Um fogo morto
Que cresceu atento
Aos olhos do senhor

VIII

Participei de guerras sem armas
Meu exército tinha estratégias e mapas
E sempre um tanque de pedra
Esmagava meus carros de plástico
Meus desenhos sem forma
Sempre estive de prontidão
Para colar as sobras no corpo da vida

Depois vieram as irmãs renascidas
E um tempo me vi
Colocando flores
Nos cabelos das palavras
Para acalentar outras errâncias
Que não a minha, consumada

IX

O fogo do espanto
Me levou à juventude
E comecei tarde
A desvendar o amor
Dei um laço no próprio dedo
Que ficou nos lábios
De alguma rua antiga
Fora do tempo

Perdi o laço
Como quem esquece a ponta do dedo
Que olhou tantas vezes
Fazendo esboços do infinito

Tinha mastigado o coração
E o incêndio por dentro
Nunca se debelou

X

Meu corpo tinha murmúrios e gritos
Fui para outros mundos
Criar força nos olhos

Fiz dos ombros meu coração mais forte
Sangrei nas ruas do Recife
Até o sol queimar meus diabos
Cheguei como quem dorme
E acorda em outra casa
Com um sobrenome alheio
E todos os deuses diferentes

Acendi lâmpadas que não iluminam
Gerenciei fracassos com a sabedoria de um cão
Masturbei minha solidão com saliva
E meus dedos viraram corpos
Das mulheres que desencontrei

Mastiguei livros em lâmpadas
Mais fracas do que velas
Meus companheiros de cela estudantill
Eram todos pobres e feios como eu

Comi sopas em pratos de papel
Mastiguei pães de pedra
Ruminei feijões esquecidos pelo tempo
Lambi minha própria língua uterina
Até que saí para as asas ancestrais
De cujo ventre nasceu uma flor


XI

Vasculhei as ruas com meus passos pândegos
Colori meus cabelos na desordem dos tempos
Roubei as palavras secretas
Que sobravam de outros alfabetos
Deixei minhas retinas
Se embebedarem das gentes

O suor dos dias
Me revelou a semente por colher
No rosto dos guerrilheiros
Resplandeci meu país
Encontrei numa esquina
Exausto e nunca vencidos
O batalhão dos desiguais

XII

De memória em memória
De dor em dor
As pedras brotaram
Resvalando nas flores

Meus contemporâneos de infância
Tinham décadas a mais
Faltei ao encontro
Me restava escutar as batalhas que tinham lutado
Sem mim

Estive em Minas com o José
Bati meus ossos nas celas com o Gildo
Cantei solene na imundície com o Rubens
Tracei planos de fuga com o Ricardo
Enlouqueci cantarolando com o Edinaldo
Toquei com minha frágil lembraça
Túmulos nunca revelados
Cavados na escuridão, ferindo a terra
Fui cercado na esperança de Ibiúna
Enlouqueci como os pais de jovens mortos

Amparei os filhos, nascidos e sangrados
Raspei os meus cílios em protesto
Tudo vi, tudo escutei
Os uivos, os rangidos, o sobressalto das campainhas
O peso de cada passo
O sobressalto da urina no chão do fracasso
Fui carcomido

E tive que deixar as traças
Visitarem meu coração

XIII

Os ventos me levaram
Ao umbigo do País
Onde a ordem diz forjar o progresso

Lá, onde o frio queimou minhas quimeras
Abriu novas feridas
Talvez uma fístula sob encomenda
Algum deus querendo seu pagamento

As entranhas banhadas de luz
Se refazia
Como se o sol rachasse
Como se as certezas vencidas
Se tornassem horas consumadas
O céu, como um cardume de vaga-lumes
Me emprenhou de palavras, gritos, manchetes
Deixei pedras escritas no ar

XIV

O amor, com seus espasmos azuis
Como uma espátula crua
O riso extremado, que semeia girassóis
Me visitou, tocou meus alforjes
Guardou minhas armas detrás da porta

Mas as mãos também se perdem
Muito embora os lábios se entrelacem como as ramagens
Em meio aos ruídos do coração, dos carros
Pulando como um animal faminto
Pronto para virar segredo
Meus olhos naufragaram

Mastiguei meus dentes
Lambi a grota salobra da minha dor

O tempo tornou-se um cão sem rabo

XV

Um dia, o cão farejou o velho poste da rua sem nome
Urinou sua dor no pedaço de concreto
E seu rabo balançou novamente
(tinha somente uma cicatriz, onde outrora faltara a ramagem da alma)

A fonte tinha se consumido
Entre os círios da alegria
Vistos mesmo à contraluz
(a cicatriz dos que amam demais e deixam pedaços do próprio corpo
no caminho)

Então o tempo tornou-se o rabo
Renascido do meu cão

XVI

Mas o mundo, de tão grande,
Queria ser visitado por meus dedos
E parti com meus desertos
Ao encontro de outros segredos

Estive com a mesma sede
A mesma asma de um guerrilheiro cubano
Nas selvas da Bolívia
Fui aos mares impensados
Toquei as pedras de Santiago
Com o corpo pesado
Fui ao fundo das geleiras
Cantei plegarias para um lavrador com o Victor
Debrucei meus olhos sobre Amanda
Enquanto o velho estádio enchia suas arquibancadas
De homens destinados ao martírio
Meus pés deixaram para trás
Quatro ou cinco mil países da esperança
Seis ou sete cidades que fundei
Árvores e animais que inventei
Para retornar ao menor sinal da fome da lembrança
Que nunca cessa

Em cada mundo, uma língua
Uma forma de debelar o fogo
Um jeito de pronunciar “Meu Deus”
Uma sonoridade para cada manhã

Fui ao infinito muitas vezes
Agarrado à bússola com um norte falso
Me perdi dos meus Ulisses
Percorri safáris e matei os guias
Salvei animais mais selvagens que eu
Fui aos museus corromper os vigias
Para que libertassem todos de seus mausoléus
Visitei os cemitérios de todas as guerras
Roubei flores para planta-las
Nas mãos da cega entorpecida
Que sabia decorado todas as mortes
Dos que ainda não tinham nascido
Naquela manhã

XVII

Vieram outros homens
Mulheres por conhecer
Crianças por contemplar
Senti o cheiro dos espíritos
Em todas as nucas que respirei

Fiz um mercado público
Para vender coisas malogradas
Vícios que inventei
Conversei sobre as frutas fora de época
Entendi a geografia íntima dos desesperados
Os que carregam uma tijela vazia
À procura de um ponto de luz
Nas palavras do Josué

Encontei bêbados disfarçados de loucos
Vagabundos repletos de bibliotecas
Sempre lhes dei de beber
Acendi seus cigarros
Viramos madrugadas comendo tormenta
Sempre os olhei com os tratos
De uma mãe de resguardo

XVIII

Na volta de todos os lugares
Acendi uma fogueira em meu peito
Queimei florestas na minha tarde
Amarrei o tempo às minhas vestes

Meu refúgio teve presentes que não vejo
Mortos que não contemplo
A tosse dos que adoeceram depressa
Para celebrar a própria agonia

XIX

Voltei, mas nenhuma casa era minha
Nenhuma tinha a mesa das minhas palavras
Meu café estava forte ou fraco demais
Os tapetes no chão arrelvado
Estavam a mil metros
Do chão dos meus pés
Todas as torneiras pingavam

Meus vinténs pagaram somente
As réstias daquela tarde
Em que fui o padeiro do meu pão
Açougueiro da minha carne
Peregrino dos meus desejos

E meus erros viraram flor
O céu criou raízes

Na sofreguidão da vida
Desejei ser apenas lembrança
Transparência na janela
Réstia de luz se debatendo
No fundo
Na nesga

A poucos metros de meu exílio
Estava minha casa em ruínas
Onde bebi o café quente
Feito pelos ossos dos meus avós
Pisei no tapete macio
Domesticado pela vida
Fechei a torneira
E com meus comparsas
Comecei a remover os escombros
Para a chegada das novenas
Com o sorriso dos meus mortos

XX

Girei solitário como um cão
À procura do rabo ausente
Dei voltas ao avesso
Tocando o dorso da mesma cicatriz

Como um cego no sereno
Teimei em ver minha semelhança
Onde já não havia o espelho amordaçado

Vi que era meu próprio subúrbio,
Meu Crato, minha Creta
Meu entardecer
Distante de qualquer pátria

Fiz quermesse para os ausentes
Aprendi a calcular outra tabuada
Perdi minha caligrafia dentro de máquinas a vapor
Sonhei com meu próprio quinhão
Refundei um pedaço do cosmos
No regaço de toda a humanidade

Coube ao velho cético com rosto de tango
Muito perto do fim
Me dizer em sussurros manchados de cigarro
Que ainda não era o tempo
Que deveria ausentar-me para sempre
Até roçar a minha eternidade

XXI

Em silêncio convoquei os oráculos
Que já semeavam loucuras
Vaguei desarmado em terras queimadas
Mas não sucumbi por inteiro

Voltei à pátria dos mangues
Onde o sol me acordava antes do amanhecer
Conheci os jovens que me pediam
O meu pedaço de chão
Dei o pó, a herança dos meus trigos
Distribuí meus ramalhetes
Nos olhos que contemplei

Fiz a festa com o corpo
Senti a brisa de todas as almas
Banhei-me nos estuários
E abandonei os sudários

Tudo o que se chamava bênção
Estava a dois dedos dos meus pulmões
O rumor da vida passou a me visitar
Como uma luz visita as janelas
Apenas a lembrança de um sol entrava pelas frestas
Descobri os sábados, quando todos os homens eram bons

Errei estradas e veredas
Fui às festas que não busquei
Bebi pela sede dos meus antigos
Escrevi cartas aos que já não estavam
Invocando a junção do presente
Com partículas de eternidade
Vi que era a soma dos muitos que não sei

XXII

Fui, voltei
Esqueci meu próprio nome
Nos cadernos dos meus segredos
Andei em círculos como um disco antigo
Em um gramofone desacordado

A cada volta, uma nova escada
Uma cota de pedras
Em cada pedra, minha palavra sem rosto

Um dia, cansado de ignorar o destino da vida
Arranquei as rédeas
Joguei-as ao mar revolto
Onde estava Iemanjá

XXIII

Estava no fim da jornada
Meus cabelos criavam raízes nos ossos

Não sabia que o fim
Roçava os lábios do começo
Que o meio era a sobra de mim
Um pássaro sem asas deslizando no abismo

Voltei aos cabelos de minha avó
Que ensaiava sua derradeira novena
Numa procissão de antigas saudades

XXIV

Voltei a ser cão que não late
Guarda o que lhe resta
No focinho orvalhado

Voltei ao meu seio

XXV

Vi que um homem amamenta seu destino
Até o leite secar
Até sumirem as estrelas
E só depois é que começa a sede
E já não há o que dar
Ou receber

É quando tudo fica igual
Não há soma, data, sortilégio
Tudo se compromete com a vida

A respiração é somente o movimento dos olhos
Os pássaros são dores, mas flanam
Mesmo com a poeira, a germinação da neblina
No céu pintado por uma criança sem nome

É quando tudo cede, vinga, acalma
A bênçao do cansaço
Surge como a fonte de todos os rios
O coração bate suave como os dedos de Chopin
Não rasteja, não peca

Coloca-se o silêncio à beira da calçada:
O velho cão, morto de saudades
Apenas ergue os olhos
E não tem forças para gemer ou amar
A companheira taciturna terminou de tecer
A manta dos anos
E descobre que nunca houve espera

Não há o daqui a pouco
O bem é breve
O bom, como um cheiro de café
Ecoa na tarde da memória
Um vento passeia pelos cabelos
E de antigas fotos surgem todos os acenos

Estendo as mãos ao vazio:
Não há primavera, estações, sobressaltos
Apenas um flamboyant ardendo no pátio
Cada folha tem uma ruga
De alguém que é meu

Aquela árvore que veio do lugar mais secreto
(meu berço de areia)
foi carregada no trajeto dos meus ancestrais
veio com suas cargas de infinito
como se o carma fosse florescer

e passou com o mesmo vento
nos olhos da mesma tarde
enquanto alguma lágrima
desfiava em meu rosto
a nascente caudalosa

É a semente cheia de todos os tantos
como se um céu carregado por dentro
carregasse outras sementes
que não cansam, não calam, não esquecem
do pó da Via-Láctea
dissolvido a colheradas
em copos de geléia


Cabo de Santo Agostinho, 02 de fevereiro de 2007

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Tempo de vidro

I

Nasci o terceiro
Na linhagem dos homens

Os seios de minha mãe
Estavam gastos de outras bocas
E de longe
Mamei no tempo

Nasci com o sangue de minha mãe
Espargindo em meu corpo
A dor da vida

Minha avó foi a cativa
A me dar o pó da Via-Látea
Dissolvendo-o a colheradas
Em copos de geléia

Quando voltei
Ao seio de minha mãe
Morri de sede

A minha parte no mundo
Era destinada ao desconhecido
Que sempre fui

Então morri
e sobrevivi de minhas cicatrizes