Mortes
Nunca bombas cegas
Queimam minha rua
Destroem meu telhado, cômodas, cristaleitas
Calendários.
Nunca
Matam meus irmãos
Meus animais
Meus amigos de infância.
A guerra nunca nos alcançou em plena vida.
Não há feridos na família
Mutilados no combate
Cegados pelo invasor
Amputados à revelia.
Não há condecorados nas fotografias.
Meus avós não deixaram
Medalhinhas frias em gavetas
Que abri há pouco.
Os túmulos não são de soldados
Mortos pelo fogo alheio
No céu de alguma mocidade.
Na lista dos que caíram
Não está meu professor do primário
O padeiro José
O dono da venda que me deu conselhos.
Não nos meteram uniformes
Para estremecer os rumores da vida.
Morremos nos matando.
Sem o grito de guerra
Sem armistício.
Há trincheiras nos bares noturnos
Nas ruas sem nome
Nas calçadas estreitas.
Não há canhões.
Usamos facas, pedras, revólveres
Estiletes.
Usamos tudo o que fere, maltrata
Tudo o que mata
O que dá sangue
Tudo o que escorre pelas vielas
Vence e vai.
Matamos como um bom dia,
Após o café, na volta pra casa.
Contamos cadáveres ao final da semana
Do mês, do ano
Da década
Para descobrir que matamos mais
Que nas guerras.
Medimos, compilamos, estaticamos.
Há fotos nos jornais
De defuntos que nunca
Se esconderam a tempo.
Os moços, os morenos, os que vieram
Com poucos documentos
Poucos amigos
Os que vivem com poucos dentes
Nascem morrendo
Vivem morrendo
Morrem morrendo.
Depois eles morrem mais
Morrem de joelhos.
Não sei o que pensam nesse instante final
Que palavra teriam para dizer
Uma palavra para guardar.
Não enterramos nossos mortos
Com a bandeira nacional
Salva de tiros
Continências
Cornetas.
Não há minuto de silêncio.
Temos pressa para crescer
Para alcançarmos o futuro
Essas mortes nos aborrecem.
Morremos sem escândalo
Sem alarde
Morremos bem.
Matamos bem
Como os melhores exércitos.