sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Um poema, um mundo

Para Arsênio Meira Vasconcellos Jr.

Dê-lhe um poema:
Ali nascerá um mundo.

Dê-lhe um poeta
E todas as lástimas
Serão sinais de Deus.

(O homem que lê poesia
Como quem devora ar puro).

Por um amigo
Dá as mãos, os sapatos,
Os cabelos.

Diga “preciso de um irmão”
E ele removerá o entulho
De qualquer espera.

Arsênio.
O menino que brincava de viver
Na Praça da Bandeira.

De pé, com a fidelidade aparada, polida.

Pronto para qualquer combate:
Sem armas, escudos, sem remédios. 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Memória do corpo

Muitas quedas

Nada deixaram.

Não importa a altura, o impacto.

O corpo desdobra-se, renasce

Refaz tecidos e ossos.

Arranhões deixaram rastros, sangue, lágrimas.

A pele, mais que revela: oculta.

Dois dentes quebrados

Não me desfizeram o sorriso.

Mas certos silêncios nunca mais voltaram.
(Recife, 2014)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Ritual

Propus um rio.

E ele surgiu sem nome,

Diferente dos outros rios que sonhei, que vivi.

 
Nunca soube tocá-lo

Mover-me em sua intenção

Criar margens para tê-lo em meu sangue.


Um aceno.

Eis o que me restou

Após desenhar o fluxo

As margens que imaginei.

E ele seguiu: quieto, irrevogável

manso

(até na destruição).

 
É meu segredo mais antigo.

 
E sempre volto

Para ver suas marcas nas paredes

Do tempo que permaneceu

E seguiu, livre, arrancando as fronteiras.

terça-feira, 11 de março de 2014

Escritura



Escrevo a palavra Ódio
e meu coração reclama.

Reclama em vão
o coração

pleno de palavras cegas
de respostas mortas.

O coração tolo
que mal bate
trancafiado e duro
por dentro.

Escrevo a palavra Ódio
e meu coração declama.

Declama em vão
meu coração

coberto de súplicas
de feridas abertas.

Meu coração tosco
que escreve ódio
mas cede.

E náufrago,
sussurra amor.

(Poema do livro "O Aquário Desenterrado"). 
Rio de Janeiro, Editora Confraria do Vento, 2013.

sábado, 21 de setembro de 2013

Sobras

Todos os dias te dou um nome

Uma pedra, um pão
E vendo o que nunca plantei.

Te dou, portanto,
Sobras.

Teu nome já tinhas.
As pedras que carregas por dentro

O pão que te escolheu
Tudo era teu

(nada tem o rastro do meu sangue).

Minha entrega tardia
Lembra o consolo

A uma criança que não erra.
Mas sabe que o mundo dói.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A busca da memória


Saio à procura de memórias, palavras,
Murmúrios.
Encontro apenas escadas, corredores,
Maçanetas geladas
De lugares que nunca vi.

De nada adianta
Esta busca frenética:
Tudo está no subsolo.

O esquecimento passa, arando.
O esquecimento anda com uma sacola
Cheia de outras sementes
(é aleatório em seus costumes. Ama e esquece. Ama e malquer. Não ama e diz Amor).

Melhor não buscar, Samarone.

Aquieta-te.
Amordaça teu desejo de alcançar
O que já nem sombra é.
Nunca foi.

Deixa a memória adormeça.

Que se proteja
Como as vítimas do frio
Apenas se tocando
Em gestos impulsivos
Em silêncio.

Apenas se tocando
Se aquecendo.

Apenas morrendo. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Anotações

Anoto a vida.

Não sei se é poesia, o que faço

Se é o puro mormaço

Dar ruas do Recife

Das ruas do passado.

 
Anoto o que dizem

O que me cala

Anoto o dízimo do dia

O olhar opaco

De quem vai porque vai

De quem não tem porque ir.

 
Anoto essa mão estendida

À espera de tudo

Essa boca que se desespera

E lambe o escuro.

Anoto minhas roupas penduradas

Num varal de 1976
(era noite clara e podia vê-lo

pelo barulho do vento).

Anoto a vida.

Não sei se é poesia, o que faço
Se é puro cansaço.

 
Anoto o que me escondem
O que sequer nasceu

Mas tem sobrenome.

Anoto o que disseram ser meu.

Um dia
Deixarei um silêncio

Sem ponto final.

Um silêncio meu
O último

E a busca da poesia
Terá terminado.