sábado, 10 de dezembro de 2005

A delícia da vida

Samarone Lima

Apesar de tanto espanto
Tanta espera
A delícia da vida
Calça sapatos macios
Atravessa salões de vidro
E nem um arranhão sequer.

Sei que tens os pés desiguais
(como os meus)
mas não tenhas medo.

Te darei o sapato direito
Me darás teu sapato esquerdo.

Juntos caminharemos iguais.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

Crença

Samarone Lima

Acredito na germinação dos astros
Na desordem das entranhas
Na clorofila que evapora dos teus olhos
Céus intrigados, oceanos famintos.
Acredito nos indecifráveis murmúrios
Que ficaram e que virão
na esperança desajeitada que me ampara
Nos vulcões silenciados
Que me queimam
Nas estrelas que não existem mas estão.
Acredito na beleza dos que cansaram
No magma dos que lutam até cair
No caos das horas vivas e mortas
Nos pássaros sem asas que migram em comunhão.
Acredito no coração que late como um cão
Na viuvez dos que não souberam amar
Na fome mastigada e nunca impotente.
Acredito sobretudo nas cartas nunca postadas
Nas infâncias perdidas que formam girassóis
Nos minutos que embranquecem cabelos.
no florescer das ruas molhadas
Nos cães que ladram por costume
Na troca de olhares dos vaga-lumes e sentinelas
Na terra úmida que não é de água.
Acredito na ternura da noite que ainda não veio
Nos ossos e na carne que não vingam
Nos sonhos nunca lembrados mas adormecidos
Na morte como mariposas que nunca estão.
Acredito no meu silêncio inexplicável
Na minha febre de exílio sem pátria
Na minha fome de lutar desarmado.
Acredito no amor que, maltratado,
Resplandece alegre
Mesmo sem motivo.
Acredito no amor que receberam
Os peitos desnudos e as almas simples.
no desespero e na calma das avalanches
Que habitam meus olhos.

E mais que tudo

Acredito em ti.

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Encontros com Deus

Por Samarone Lima

Várias vezes por dia
me encontro com Deus

Quando jogo alpiste
aos pássaros que desconheço

Quando molho as plantas
debaixo da chuva

Quando caminho debaixo
do sol do Recife
nas tardes das minhas desordens

Deus nada fala.
É silencioso em seu contemplar.
Passa por mim,
disfarçado de morador de rua
de catador de papelão e velharias
com seu boné
da última eleição

No nosso último encontro, ontem
ele passou fazendo tanto silêncio
que sequer sua sombra apareceu

Pena. Esqueci de anotar
o número do candidato
a deputado federal
no boné de Deus
para tirar uns trocados
na milhar do jogo do bicho.

Poço da Panela, 22.11.005